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Ferida primal: marcas latentes da infância que sobrevivem no presente
A ferida primal ou primária é um trauma não resolvido. Ele exemplifica e aponta a vulnerabilidade do apego, a vulnerabilidade desse laço essencial entre a criança e seus pais; é a traição de necessidades emocionais não satisfeitas, não atendidas. Essa dor, originada em idades precoces e não resolvida, é algo que tentamos anestesiar na idade adulta, mas que de alguma forma continua a nos condicionar.
Um dos termos mais comuns do mundo da psicologia e, em especial, a partir da abordagem da psicanálise, é a figura da ferida, assim como do trauma. Freud nos exemplicava que essas lesões psíquicas vão de fora para dentro. Elas ocorrem em nosso ambiente mais próximo, especialmente na nossa infância. Assim, e longe de se dissolver com o tempo, essa ferida original sobrevive, permanece latente e entra em nosso ser criando camadas e mais camadas para gravitar em qualquer área da nossa vida…
Se Sigmund Freud, assim como sua filha Anna Freud, nos revelou pela primeira vez a transcendência que as primeiras experiências têm no desenvolvimento da nossa personalidade, nos anos 90 foi publicado um livro decisivo em relação a esse mesmo tema. ’Primal Wound’ ou ‘A Ferida Primal’ colocou sobre a mesa uma realidade que ia muito mais além. Neste trabalho foi explicado o trauma silencioso, invisível, mas permanente, vivido pelas crianças adotadas.
Nancy Verrier, autora do livro, destacou as ideias-chave sobre o vínculo desfeito, o afeto perinatal infligido ou as feridas geralmente inconscientes que o ser humano tende a arrastar em sua maturidade como resultado de uma infância habitada pelo vazio.
O que é a ferida primal?
O ser humano tem uma necessidade que vai além do alimento. Quando uma criança chega ao mundo, ela precisa, acima de tudo, se sentir protegida, envolta de afeto e sustentada pelo carinho. O amor nos coloca no mundo e nos nutre. O amor ajuda a nos desenvolvermos, a crescermos com segurança em um ambiente empático, onde nós podemos explorar o mundo sabendo que somos importantes para alguém.
Assim, quando um psicólogo ou terapeuta recebe seu paciente, ele também tentará criar um ambiente onde a empatia e a proximidade sejam sempre patentes e palpáveis. As pessoas precisam desse tipo de nutrientes, porque se não os percebemos, se não os vemos ou sentimos, nosso cérebro reage quase instantaneamente. Aparecem a suspeita, o medo e a tensão.
É exatamente isso que uma criança experimenta quando não recebe um apego seguro. A ferida primária surge quando os pais não são acessíveis emocional, psíquica e/ou fisicamente. Pouco a pouco a mente desse bebê, dessa criança de poucos anos, é invadida por ansiedade, fome, desejo emocional, vazio, solidão, perda e falta de proteção.
Podemos entender a ferida primal quase como um sacrilégio evolutivo. Este processo de ‘hominização’ pelo qual todo ser humano passa parte, em primeiro lugar, de uma troca de afeto sólido e de uma constante proximidade entre mãe e filho. Não podemos esquecer que um bebê vem ao mundo com um cérebro ainda imaturo, e que precisa dessa pele e desse apego seguro para continuar crescendo e dar forma a uma exogestação para promover a continuidade de seu desenvolvimento.
Se alguma coisa falha neste processo, se acontece alguma coisa nos nossos primeiros anos de vida, surge uma fratura invisível e profunda, uma lesão que ninguém vê. A mesma que (possivelmente) nos invalidará no futuro em vários aspectos da nossa vida. Vamos aprofundar a seguir.
Efeitos da ferida primal
Existe um livro muito interessante que é considerado o manual de referência no estudo do apego. Trata-se do Handbook of Attachment, dos psicólogos Jude Cassidy e Phillip R. Shaver. Neste trabalho, somos lembrados de que o próprio fim do ser humano é a autorrealização. Nosso objetivo é transcender, promover a segurança para favorecer nosso crescimento pessoal e emocional, desfrutando assim uma vida plena conosco e com os outros.
Uma das condições mais importantes para que isso ocorra é ter disposto em nossos primeiros anos de um apego seguro, maduro, próximo e intuitivo com nossas necessidades. Agora, se isso não ocorrer, surge a ferida primal e, com ela, os seguintes efeitos:
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Insegurança e autoestima baixa.
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Impulsividade, má gestão emocional.
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Maior risco de sofrer diversos transtornos psicológicos.
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Dificuldade para estabelecer relacionamentos afetivos sólidos.
A pessoa desenvolve uma ‘personalidade de sobrevivência’. Ela tenta mostrar autonomia e segurança, mas o vazio persiste e é comum passar épocas em que precisa de isolamento e solidão, e momentos em que deseja proximidade, ainda que seja prejudicial ou falsa.
Como curar a nossa ferida primal
O mais adequado nestes casos é solicitar ajuda profissional. Nos últimos anos, terapias como a EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento por meio dos Movimentos Oculares) estão se tornando mais importantes. É uma técnica em que diferentes tipos de estimulação e processamento de informação são combinados para que as pessoas tragam à luz experiências traumáticas, feridas na infância para falar sobre elas, reconhecê-las e gerenciá-las melhor.
Da mesma forma, vale a pena enunciar também essas estratégias básicas que costumam ser usadas para enfrentar e curar a nossa ferida primal. Seriam as seguintes:
Tomar consciência de nossas emoções latentes e lhes dar nomes.
Dizer em voz alta as nossas necessidades não satisfeitas (afeto, apoio, falta de proteção, proximidade empática…) Devemos ‘legitimizar’ essas necessidades, e não as reprimir.
Refletir sobre a solidão que sentimos na infância. Faremos isso sem medo, sem raiva ou vergonha. Há quem evite pensar no vazio experimentado durante a infância, quem prefere não olhar para aqueles anos de sofrimento porque sente dor e desconforto. Devemos trazer esse eu ferido para a luz, aquela parte de nós mesmos ainda cheia de raiva porque não sentiu afeto e segurança suficientes.
Entenda que nada foi responsabilidade sua. A vítima não tem culpa de nada.
Permita-se liberar sua tristeza, suas emoções internas. Desabafe.
Comprometa-se consigo mesmo na mudança, seja capaz de se transformar, de se responsabilizar por uma mudança em direção ao bem-estar interior.
Por último, os especialistas no gerenciamento e no enfrentamento da ferida primal e trauma nos recomendam perdoar. Conceder o perdão a nossos progenitores não os exime da culpa, mas permite que nós nos libertemos de suas figuras. É aceitar o sucedido, é assumir a realidade de tudo o que sofremos, mas ser capaz de oferecer um perdão que nos permita cortar o laço da dor para avançar muito mais rápido. Livres de dor, de raiva e das recordações do passado.
Vamos pensar nisso. O tema da ferida primal suscita sem dúvida um grande interesse e vale a pena compreender essa complexa realidade psicológica.
Fonte: https://amenteemaravilhosa.com.br/ferida-primal/