Contexto social
A França sofreu muito em virtude dos tremendos abusos, não só por parte da aristocracia mas também do clero. Esses problemas culminaram na Revolução Francesa que se iniciou em 1789. A aristocracia e a Igreja foram derrubadas. Milhares foram assassinados e o rei Bourbon, Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, decapitados. Igrejas fora profanadas e incendiadas; imagens e ícones religiosos foram destruídos. A plena ordem social só foi restabelecida com a ascensão a um novo trono de Napoleão Bonaparte, cujos sucessos militares repentinos e fantásticos logo incluíam a maior parte da Europa. Napoleão declarou-se imperador em 1804. O império de Bonaparte foi o mais esplêndido desde o de Carlos Magno. Mas desmoronou com a derrota para os ingleses em 1815, e a família Bourbon foi reconduzida ao trono. O novo rei era o primeiro irmão do Luís XVI decapitado, o qual se intitulou Luís XVIII; foi seguido em 1824, pelo segundo irmão, que se denominou Carlos X.
Os franceses, porém, estavam seriamente divididos e o povo insistia em ter o direito de opinar no governo. A situação toda estava bastante ingovernável e teve início uma série de experimentos políticos e disparates dramáticos.
Uma lei que indenizava os nobres pelas terras confiscadas durante a grande Revolução Francesa provocou um clamor de desaprovação nacional. Enormes benefícios foram, outra vez, concedidos à Igreja e, novamente, o ódio popular manifestou-se contra ela. Clérigos, conventos e igrejas voltaram a ser atacados e colocados em grande perigo. Jornalistas liberais ajudaram a despertar emoções e sentimentos contrários a Carlos X.
Em 1830, a violência e as insurreições eram visíveis por toda parte. Carlos X tentou remediar a situação, dissolvendo a câmara liberal em março. Nos primeiros dias de julho, ele e seus administradores cometeram o grave erro de impor novos regulamentos que cerceavam a liberdade de imprensa.
A essa altura manifestou-se uma fúria social sem precedentes que, apenas duas semanas depois da publicação dos regulamentos, culminou na revolução de julho de 1830. Essa revolução depôs Carlos X, que fugiu com a família para a Inglaterra. O trono, então passou para Luis Filipe, da linha secundária dos Bourbons, que se intitulou “Rei Cidadão”. O ódio, a dissensão e o descontentamento reinavam em toda parte, juntamente com linhas de idéias radicais, inclusive o marxismo florescente.
Entretanto, algo inesperado mobiliza um repentino e crescente retorno à fé e à Igreja.
Nos últimos meses de 1830, foi posta à venda a edição limitada de uma nova medalha religiosa. Suas origens ficaram algum tempo em segredo. Mas não demorou para que curas milagrosas do corpo, da mente e da alma lhe fossem atribuídas, o que aumentou as vendas.
Logo se ouviu dizer que a medalha fora mandada cunhar durante importante aparição de Maria Santíssima, a primeira após passarem-se trezentos anos sem qualquer notícia de aparição mariana (a aparição anterior trata-se de Nossa Senhora de Guadalupe, em 1531. A Inquisição espanhola (1480-1820) e a Inquisição romana (1549-1829) teriam considerado heresia ou como sendo de origem diabólica qualquer aparição). Em breve e sem explicação, essa se tornou uma das medalhas religiosas mais vendidas de todos os tempos, não só na França, mas também em toda a Europa.
Embora durante algum tempo faltassem detalhes, corria o boato que uma aparição havia sido vista por uma freira no convento das irmãs de Caridade, na rue du Bac, 140, em Paris. Começaram a chegar romeiros. A aparição ocorreu a uma noviça chamada Catarina Labouré. Catarina nasceu em 2 de maio de 1806, no lugarejo de Fain-les-Moutiers, não longe de Dijon, dois anos depois de Napoleão se fazer imperador. Algumas fontes indicam que a capacidade intelectual de Catarina era medíocre, outras fontes indicam que ela permaneceu “estranhamente inculta”, outras, ainda, informam que suas aptidões para o estudo eram “realmente inescrutáveis” e que sua “estupidez era alvo de troça por parte dos mestres”. Em tenra idade, ela pedira ao pai permissão para ser freira, mas ele recusou com aspereza, por causa de seus sentimentos anticlericais. Finalmente, em 21 de abril de 1830, Catarina, então com 24 anos, foi recebida como postulante e encaminhada ao convento na rue du Bac, em Paris.
Apenas três meses depois de entrar para o convento como postulante, ela foi dormir, na noite de 18 de julho de 1830, véspera da festa de São Vicente de Paulo, convencida – como parece ter contado a todos que quisessem ouvi-la - que o santo padroeiro a ajudaria a satisfazer seu grande desejo que era ver a Virgem Maria. Em 18 de julho, faltava apenas nove dias para a revolução de julho de 1830 e fazia pouco tempo que haviam sido publicados os regulamentos de julho para silenciar a imprensa.
Às onze e meia da noite, Catarina acordou, e ouviu chamarem-na três vezes pelo nome. No quarto, viu um menino de uns 4 ou 5 anos, de brilhantes cabelos loiros, envolto em uma luz dourada e vestido de branco.
- Levante-se – disse o menino. – Minha irmã, minha irmã! Venha depressa à capela. A Virgem Santíssima a aguarda.
Mais tarde, Catarina declarou ao padre Aladel ter ficado confusa e perturbada e perguntado ao menino como poderia atravessar os escuros corredores do convento para chegar à capela, sem despertar as outras irmãs.
- Não tema – respondeu o menino. – Todas estão dormindo. Vou com você.
Catarina seguiu-o pelos corredores. No caminho, as velas acenderam-se, o que a deixou atônita. O menino seguia à esquerda dela, um pouco à frente, e estava cercado de raios de luz.
A porta da capela abriu-se sozinha e o interior estava todo iluminado. Catarina não viu a Virgem Santíssima em nenhum lugar da capela, mas o menino conduziu-a ao sacrário, ao lado da cadeira do diretor, onde aguardaram. (A cadeira conserva-se no convento.) Catarina estava nervosa e apreensiva, temendo ser descoberta e punida pelas sentinelas noturnas.
Catarina contou que, à meia-noite ouviu um ruído como o frufru de um vestido ou o farfalhar de muitas saias de seda. Viu, sentada na cadeira do diretor nos degraus do altar, uma senhora que parecia mais uma dama de fino trato que uma santa.
- Eis a Virgem Santíssima – disse o menino. – Ei-la!
Catarina declarou não ter reconhecido esta senhora como a Virgem Santíssima. Mas parece que o menino “leu seus pensamentos” e, com voz mudada para a de um homem adulto, reafirmou que a senhora era mesmo a Virgem Santíssima.
Catarina estava perplexa quando a senhora começou a falar. Muitos dos registros são consistentes sobre o que a Senhora disse, em grande parte porque, mais tarde, o principal historiador de Catarina, Jules Chevalier, forneceu a versão aceita oficialmente. A Senhora começou:
Minha filha, o bom Deus quer encarregá-la de uma missão. Você terá que sofrer muito, mas superará os sofrimentos ao refletir que tudo que faz é para a glória de Deus. Será atormentada até dizer ao que está encarregado de orientá-la (padre Aladel ou o diretor, ou ambos). Será desmentida; mas não tema, pois terá graça. Conte com confiança tudo que se passa aqui e em seu íntimo. Conte tudo com simplicidade. Não tema. Os tempos são muito maus. Calamidades vão se precipitar sobre a França, o trono será (novamente) derrubado, logo o mundo inteiro vai mergulhar em todos os tipos de infortúnio. Mas agora venha ao pé do altar. Aí graças serão derramadas sobre todos, grandes ou pequenos, que as peçam com fervor. Graves calamidades estão para acontecer. Será grande o perigo para esta (o convento) e para outras comunidades religiosas. Em dado momento, quando o perigo for crítico, todos vão achar que tudo está perdido; você recordará minha visita e (este convento) terá a proteção de Deus. Mas não será assim com outras comunidades.
Então, lágrimas apareceram nos olhos da Senhora.
Haverá vítimas entre o clero de Paris – monsenhor, o arcebispo (as lágrimas voltam a marejar-lhe os olhos). Minha filha, a cruz será tratada com desprezo, eles a derrubarão por terra e a calcarão aos pés. O sangue correrá. As ruas ficarão cheias de sangue. Monsenhor, o arcebispo, será despojado de suas vestes (aqui a Senhora se angustia e não consegue falar por um tempo).
Durante esse interlúdio, Catarina imaginava quando tudo isso aconteceria. Descobriu que “sabia”. Alguns acontecimentos seriam logo, outros “dali a quarenta anos (1870)”.
A Senhora continuou: Meus olhos estarão sempre em você. Conceder-lhe-ei graças. Graças especiais serão concedidas a todos que as pedirem, mas é preciso rezar.
Nesse momento, a aparição sumiu como uma nuvem que tivesse evaporado. O menino levou-a de volta ao quarto. O relógio bateu duas horas.
Na manhã seguinte (19 de julho), Catarina contou que tinha visto a Virgem Santíssima, e apesar de as fontes não dizerem a quem ela deva ter contado, recebe a proibição desse “alguém” para não contar aos outros. Mas, em breve, o segredo que ninguém deveria saber logo chegou aos ouvidos de todos. E é certo, também, que o cumprimento das profecias dadas pela Virgem ajudou a confirmar a autenticidade da aparição. A Senhora predissera na noite de 18 para 19 de julho: “O trono será derrubado”. O rei Carlos X foi destronado oito dias mais tarde, entre 26 e 28 de julho, durante os “três dias gloriosos”, que ficaram conhecidos como a revolução de julho de 1830.
As graves enfermidades profetizadas vieram à tona na forma de barricadas montadas nas ruas de Paris, distúrbios em Paris e outros lugares e na matança de muita gente. Saqueadores invadiram igrejas, crucifixos foram jogados por terra e quebrados, e houve quem defecasse e urinasse sobre eles. Como a Senhora predissera, “monsenhor, o arcebispo (o arcebispo de Quelen)” foi agredido, despojado à força de suas vestes e duas vezes teve de fugir para salvar a vida.
Além disso, e mais uma vez como profetizado, o convento das Irmãs de Caridade na rue du Bac foi cercado por uma multidão zangada que deu tiros em sua direção, enquanto outros edifícios religiosos foram incendiados e destruídos. Mas, como a Senhora prometera, as aterrorizadas moradoras da rue du Bac não foram molestadas.
Em 1870, quarenta anos mais tarde, a cruz foi outra vez “calcada aos pés” e monsenhor Darboy, então arcebispo de Paris, foi assassinado no início da guerra franco-prussiana. Esses acontecimentos confirmaram as profecias que Catarina disse ter recebido da Senhora – exceto as pertinentes ao “mundo inteiro”.
Passados quatro meses da primeira aparição, a Virgem volta a comunicar-se com Catarina, que nos conta:
Em 27 de novembro de 1830, que caiu no sábado antes do primeiro domingo do Advento, às cinco e meia da tarde... ouvi um som semelhante ao farfalhar de um vestido de seda, vindo do púlpito perto do quadro de São José.
Virando-me naquela direção, vi a Virgem Santíssima (flutuando) na altura do quadro. A Virgem estava de pé. Era de estatura média e estava toda trajada de branco.
Seu vestido era da brancura da aurora, no estilo que se chama “a la Vierge” – isto é, gola alta e mangas lisas. Um véu branco cobria-lhe a cabeça e descia dos dois lados, até os pés. Sob o véu, o cabelo cacheado estava preso com uma fita enfeitada de renda... Tinha o rosto descoberto, na verdade bem descoberto e tão belo que me parecia impossível descrever sua beleza arrebatadora.
Tinha os pés apoiados em uma esfera branca, quer dizer, meia esfera, ou, pelo menos, eu só via a metade. Havia também uma serpente, verde com manchas amarelas.
Em volta da Virgem Santíssima havia uma moldura ligeiramente oval. Dentro da moldura, estava escrito em letras de ouro: “Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós”.
A inscrição, em semicírculo, começava na altura da mão direita, passava por cima da cabeça e terminava na altura da mão esquerda. As mãos (agora) elevavam-se à altura do estômago e seguravam, de maneira muito natural, como se a oferecessem a Deus, uma esfera de ouro encimada por uma cruzinha dourada, que representava o mundo. Tinha os olhos baixos, não voltados para o céu. Seu rosto era de tal beleza que eu não saberia descrevê-lo.
De repente, percebi anéis nos seus dedos, três anéis em cada dedo, o maior perto da base do dedo, um de tamanho médio no meio, o menor na ponta. Todos os anéis eram adornados de pedras preciosas, umas mais belas que as outras; as pedras maiores emitiam raios maiores e as menores, raios menores; partindo de todos os lados, os raios inundavam a base, de modo que eu não via mais os pés da Virgem Santíssima.
Nesse momento, enquanto eu a contemplava, a Virgem Santíssima baixou os olhos e me fitou. Ouvi uma voz que disse estas palavras: “Esta esfera que você vê representa o mundo inteiro, em especial a França e cada pessoa em particular.” Não sei exprimir o que senti ao ouvir isso, o que vi, a beleza e o fulgor dos raios deslumbrantes. “Eles (os raios) são o símbolo das graças que derramo sobre os que as pedem. As pedras que não emitem raios são as graças que as almas se esquecem de pedir” .
A esfera dourada desapareceu no brilho dos feixes de luz que irrompiam de todos os lados; as mãos voltaram-se para fora e os braços inclinaram-se sob o peso dos tesouros de graças obtidas.
Então, a voz disse: “Mande cunhar uma medalha com este modelo. Todos os que a usarem receberão grandes graças e devem trazê-la ao pescoço. As graças serão abundantes para os que a usarem com confiança”.
Nesse instante, pareceu-me que o quadro se virava e vi o reverso da medalha: um grande M encimado por uma barra e uma cruz; abaixo do M estavam os corações de Jesus e Maria, um coroado de espinhos, o outro traspassado por uma espada.
Nesse momento, a aparição desapareceu “como uma vela que se apagasse”. Muitas reproduções artísticas posteriores desta aparição não incluem o véu branco, mas incluem um manto azul ao redor dos ombros e dos braços, não mencionando na descrição feita por Catarina.
A mesma aparição de Maria Santíssima a Catarina repetiu-se quatro ou cinco vezes. A última foi em janeiro de 1831 e nela a Senhora disse que Catarina não a veria mais, porém com frequência ouviria “minha voz em suas orações”.
Em maio de 1832, são cunhados os primeiros dois mil exemplares da medalha, e imediatamente distribuídas aos doentes e pobres que estavam aos cuidados das Irmãs de Caridade. Logo alguns pacientes relataram conversões e curas milagrosas e a medalha passou a ser conhecida como a Medalha Milagrosa. Curas e conversões semelhantes continuam a ocorrer.
Documentos aceitos como oficiais mencionam que nos dois anos seguintes (1832-1833), cinquenta mil medalhas foram cunhadas e doadas ou vendidas. Na França, no outono de 1834, tinham sido vendidas mais quinhentas mil, dois milhões em 1836, um milhão um ano depois e mais de um bilhão tinham sido vendidos em todo o mundo quando Catarina morreu, em dezembro de 1876.
Registros oficialmente aceitos mencionam que os primeiros inquéritos sobre a autenticidade da aparição só se realizaram em 1836, mas a circulação da medalha foi aprovada em 1832 e, em 1836, dois milhões de medalhas haviam sido vendidos.
A postulante Catarina Labouré, que não escondera seu desejo de ver a Virgem Santíssima, tornou-se irmã Catarina em 30 de janeiro de 1831, pouco tempo depois da última aparição de Maria. Foi imediatamente designada para ser cozinheira no asilo de Enghien, na cidade de Reuilly. Com essa ocupação, o instrumento de Maria Santíssima viveu no asilo os 46 anos seguintes. Suas condições eram humildes, mas é evidente que ela não se esforçou para melhorá-las. Guardou silêncio voluntário sobre a aparição.
Pouco antes de sua morte tranquila em 31 de dezembro de 1876, pediram a Catarina para confirmar se, na verdade, foi ela quem viu “la Sainte Vierge”. E ela confirmou.
Em 1895, foram concedidos à Medalha Milagrosa missa e ofício dentro da liturgia católica romana. A casa onde Catarina passou a infância transformou-se em museu.
Em 1933, o corpo de Catarina, que havia muito tempo sepultado, foi exumado e o exame médico considerou-o em perfeito estado de conservação, com os olhos ainda azuis (depois da morte, os olhos sempre escurecem e se decompõem depressa). A conservação de seu corpo bastante tempo após a morte é automaticamente aceita como prova tangível de que a vidente foi escolhida especialmente por vontade divina. O corpo de Catarina foi trasladado para a capela do convento da rue de Bac onde, durante algum tempo, pôde ser visto através de um vidro protetor. Hoje o corpo está sob o altar construído no lugar da primeira aparição da Virgem Santíssima na capela do convento e, em média, recebe mais de mil visitantes por dia, maravilhados e cheios de veneração.
Em 1947, o papa Pio XII canonizou santa Catarina Labouré. Uma das principais formas de veneração desta santa é a novena perpétua (rezada semanalmente) em honra de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa. Iniciada em 1930, na Filadélfia, é rezada, desde então, em mais de cinco mil igrejas espalhadas pelo mundo todo.