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Cardeal alemão aponta autocontradições em Declaração do Papa

26-12-2023
Fonte: https://brasilsemmedo.com/cardeal-alemao-aponta-autocontradicoes-em-declaracao-do-papa/

 

Cardeal Gerhard Ludwig Müller

Com a Declaração Fiducia supplicans (FS) sobre o Significado Pastoral das Bênçãos, o Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) fez uma afirmação sem precedentes no ensino da Igreja Católica. De fato, este documento afirma que é possível para um sacerdote abençoar (não liturgicamente, mas de forma privada) casais que vivem em uma relação sexual fora do casamento, incluindo casais do mesmo sexo. As muitas perguntas levantadas por bispos, padres e leigos em resposta a essas declarações merecem uma resposta clara e inequívoca.

Essa declaração não contradiz claramente o ensino católico? Os fiéis são obrigados a aceitar este novo ensino? O padre pode realizar tais novas práticas que acabaram de ser inventadas? O bispo diocesano pode proibi-las se elas ocorrerem em sua diocese? Para responder a estas perguntas, vejamos o que exatamente o documento ensina e em que argumentos se baseia.

O documento, que não foi discutido nem aprovado pela Assembleia Geral de Cardeais e Bispos deste Dicastério, reconhece que a hipótese (ou doutrina?) que propõe é nova e que se baseia principalmente no magistério pastoral do Papa Francisco.

De acordo com a fé católica, o papa e os bispos podem estabelecer certos acentos pastorais e relacionar criativamente a verdade da Revelação aos novos desafios de cada época, como, por exemplo, no campo da doutrina social ou da bioética, respeitando os princípios fundamentais da antropologia cristã. Mas essas inovações não podem ir além do que lhes foi revelado de uma vez por todas pelos apóstolos como palavra de Deus (Dei verbum 8). De fato, não existem textos bíblicos ou textos dos Pais e Doutores da Igreja ou documentos anteriores do magistério que apoiem as conclusões da FS. Além disso, o que vemos não é um desenvolvimento, mas um salto doutrinal. Pois só se pode falar de um desenvolvimento doutrinal se a nova explicação estiver contida, pelo menos implicitamente, na Revelação e, acima de tudo, não contradizer as definições dogmáticas. E um desenvolvimento doutrinal que atinja um significado mais profundo da doutrina deve ter ocorrido gradualmente, através de um longo período de maturação. De fato, o último pronunciamento magisterial sobre esta matéria foi emitido pela Congregação para a Doutrina da Fé em uma resposta publicada em março de 2021, há menos de três anos, e rejeitou categoricamente a possibilidade de abençoar essas uniões. Isso se aplica tanto às bênçãos públicas quanto às bênçãos privadas para pessoas que vivem em condições pecaminosas.

De fato, não existem textos bíblicos ou textos dos Pais e Doutores da Igreja ou documentos anteriores do magistério que apoiem as conclusões da Fiducia supplicans.

Como a FS justifica a proposta de uma nova doutrina sem contradizer o documento anterior de 2021?

Em primeiro lugar, a FS reconhece que tanto a Resposta do CDF de 2021 quanto o ensino tradicional, válido e vinculativo sobre bênçãos não permitem bênçãos em situações contrárias à lei de Deus, como no caso de uniões sexuais fora do casamento. Isso é claro para os sacramentos, mas também para outras bênçãos que a FS chama de “litúrgicas”. Essas bênçãos “litúrgicas” pertencem ao que a Igreja chamou de “sacramentais”, como testemunhado pelo Rituale Romanum. Nestes dois tipos de bênçãos, deve haver um acordo entre a bênção e o ensino da Igreja (FS 9-11).

Portanto, para aceitar a bênção de situações contrárias ao Evangelho, o DDF propõe uma solução original: ampliar o conceito de bênção (FS 7; FS 12). Isso é justificado da seguinte maneira: “Também se deve evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a este ponto de vista [ou seja, para as bênçãos ‘litúrgicas’ dos sacramentos e sacramentais], pois nos levaria a esperar as mesmas condições morais para uma simples bênção que são exigidas para a recepção dos sacramentos” (FS 12). Ou seja, é necessário um novo conceito de bênção, um que vá além das bênçãos sacramentais para acompanhar pastoralmente a jornada daqueles que vivem no pecado.

Agora, na realidade, essa extensão além dos sacramentos já ocorre por meio de outras bênçãos aprovadas no Rituale Romanum. A Igreja não exige as mesmas condições morais para uma bênção como para receber um sacramento. Isso acontece, por exemplo, no caso de um penitente que não quer abandonar uma situação pecaminosa, mas que pode humildemente pedir uma bênção pessoal para que o Senhor lhe dê luz e força para entender e seguir os ensinamentos do Evangelho. Este caso não requer um novo tipo de bênção “pastoral”.

Por que, então, é necessário ampliar o significado de “bênção”, se a bênção conforme entendida no Rito Romano já vai além da bênção dada em um sacramento? A razão é que as bênçãos contempladas pelo Rituale Romanum só são possíveis sobre “coisas, lugares ou circunstâncias que não contradizem a lei ou o espírito do Evangelho” (FS 10, citando o Ritual Romano). E este é o ponto que o DDF quer superar, já que quer abençoar casais em circunstâncias, como relacionamentos do mesmo sexo, que contradizem a lei e o espírito do Evangelho. É verdade que a Igreja pode adicionar “novos sacramentais” aos existentes (Vaticano II: Sacrosanctum Concilium 79), mas ela não pode mudar seu significado de tal maneira a banalizar o pecado, especialmente em uma situação cultural ideologicamente carregada que também confunde os fiéis. E esta mudança de significado é precisamente o que acontece na FS, que inventa uma nova categoria de bênçãos além daquelas associadas a um sacramento ou a uma bênção conforme a Igreja as entende. A FS diz que essas são bênçãos não-litúrgicas que pertencem à piedade popular. Então, haveria três tipos de bênçãos:

a) Orações associadas aos sacramentos, pedindo que a pessoa esteja no estado adequado para receber os sacramentos, ou pedindo que a pessoa receba a força para se afastar do pecado.

b) Bênçãos, conforme contidas no Rituale Romanum e conforme a doutrina católica sempre entendeu, que podem ser dirigidas a pessoas, mesmo que vivam no pecado, mas não a “coisas, lugares ou circunstâncias que... contradizem a lei ou o espírito do Evangelho” (FS 10, citando o Ritual Romano). Assim, por exemplo, uma mulher que fez um aborto poderia ser abençoada, mas não uma clínica de aborto.

c) As novas bênçãos propostas pela FS seriam bênçãos pastorais, não litúrgicas nem rituais. Portanto, elas não teriam mais a limitação de bênçãos “rituais” ou do tipo “b”. Elas poderiam ser aplicadas não apenas a pessoas em pecado, como nas bênçãos “rituais”, mas também a coisas, lugares ou circunstâncias contrárias ao Evangelho.

Essas bênçãos do tipo “c”, ou bênçãos “pastorais”, são uma novidade. Não sendo litúrgicas, mas sim de “piedade popular”, supostamente não comprometeriam a doutrina evangélica e não precisariam ser consistentes com as normas morais ou a doutrina católica. O que pode ser dito sobre esta nova categoria de bênção?

Uma primeira observação é que não há base para este novo uso nos textos bíblicos citados pela FS, nem em qualquer declaração anterior do Magistério. Nem os textos oferecidos pelo Papa Francisco fornecem base para este novo tipo de bênção. Pois já a bênção de acordo com o Rituale Romanum (tipo “b”) permite que um sacerdote abençoe alguém que vive no pecado. E este tipo “de bênção pode facilmente ser aplicado a alguém que está na prisão ou em um grupo de reabilitação, como diz Francisco (citado na FS 27). A inovadora bênção “pastoral” (tipo “c”), em contraste, vai além do que diz Francisco, porque se poderia dar tal bênção a uma realidade contrária à lei de Deus, como um relacionamento extraconjugal. De fato, de acordo com o critério deste tipo de bênçãos, até mesmo uma clínica de aborto ou um grupo mafioso poderia ser abençoado.

Isso leva a uma segunda observação: é perigoso inventar novos termos que vão contra o uso tradicional da linguagem. Tal procedimento pode dar origem a exercícios arbitrários de poder. No caso em questão, o fato é que uma bênção tem uma realidade objetiva própria e, portanto, não pode ser redefinida à vontade para se adequar a uma intenção subjetiva contrária à natureza de uma bênção.

Aqui vem à mente a famosa linha de Humpty Dumpty em Alice no País das Maravilhas: “Quando uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu escolho que signifique, nem mais nem menos.” Alice responde: “A questão é se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.” E Humpty Dumpty diz: “A questão é quem é o mestre; é só isso.”

A terceira observação relaciona-se ao próprio conceito de uma “bênção não litúrgica” que não pretende sancionar nada (FS 34), ou seja, uma bênção “pastoral” (tipo “c”). Como ela se diferencia da bênção contemplada pelo Rituale Romanum (tipo “b”)? A diferença não está na natureza espontânea da bênção, que já é possível nas bênçãos do tipo “b”, uma vez que não precisam ser regulamentadas ou aprovadas no Rituale Romanum. Nem a diferença está na piedade popular, já que as bênçãos de acordo com o Rituale Romanum já são adaptadas à piedade popular, que pede a bênção de objetos, lugares e pessoas. Parece que a inovadora bênção “pastoral” é criada ad hoc para abençoar situações contrárias à lei ou ao espírito do Evangelho.

Isso nos leva a uma quarta observação sobre o objeto desta bênção “pastoral”, que a distingue de uma bênção “ritual” do Rituale Romanum. Uma bênção “pastoral” pode incluir situações contrárias ao Evangelho. Note-se que aqui não são apenas pessoas pecadoras que são abençoadas, mas que, ao abençoar o casal, é o próprio relacionamento pecaminoso que é abençoado. Ora, Deus não pode enviar sua graça sobre um relacionamento que é diretamente oposto a ele e não pode ser ordenado para ele. Relações sexuais fora do casamento, qua relações sexuais, não podem aproximar as pessoas de Deus e, portanto, não podem se abrir à bênção de Deus. Portanto, se essa bênção fosse dada, seu único efeito seria confundir as pessoas que a recebem ou que a assistem. Elas pensariam que Deus abençoou o que Ele não pode abençoar. Esta bênção “pastoral” não seria nem pastoral nem uma bênção. É verdade que o Cardeal Fernandez, em declarações posteriores à Infovaticana, disse que não é a união que é abençoada, mas o casal. No entanto, isso é esvaziar uma palavra de seu significado, já que o que define um casal como casal é precisamente o fato de serem uma união.

A dificuldade de abençoar uma união ou casal é particularmente evidente no caso da homossexualidade. Pois, na Bíblia, uma bênção está relacionada à ordem que Deus criou e declarou ser boa. Esta ordem é baseada na diferença sexual entre o homem e a mulher, chamados a ser uma só carne. Abençoar uma realidade contrária à criação não é apenas impossível, é blasfêmia. Mais uma vez, não se trata de abençoar pessoas que “vivem em uma união que de forma alguma pode ser comparada ao casamento” (FS, n. 30), mas de abençoar a própria união que não pode ser comparada ao casamento. É precisamente para este fim que se cria um novo tipo de bênção (FS 7, 12).

Vários argumentos que aparecem no texto tentam justificar estas bênçãos. Primeiro, a possibilidade de condições que reduzem a imputabilidade do pecador. No entanto, estas condições referem-se à pessoa, não à relação em si. Também é dito que pedir a bênção é o bem possível que estas pessoas conseguem perceber em suas condições atuais, como se pedir uma bênção já constituísse uma abertura para Deus e para a conversão. Isso pode ser verdade para aqueles que pedem uma bênção para si mesmos, mas não para aqueles que pedem uma bênção como casal. Estes últimos, ao pedirem uma bênção, implicitamente ou explicitamente buscam justificar sua própria relação diante de Deus, sem perceber que é justamente sua relação que os afasta de Deus. Por fim, afirma-se que há elementos positivos na relação e que estes podem ser abençoados, mas esses elementos positivos (por exemplo, que um ajuda o outro em uma doença) são secundários à própria relação — cuja característica definidora é o compartilhamento da atividade sexual — e esses elementos não alteram a natureza desta relação, que de modo algum pode ser direcionada a Deus, conforme já observado no Responsum de 2021 da Congregação para a Doutrina da Fé. Mesmo em uma clínica de aborto, existem elementos positivos, desde os anestesistas que evitam a dor física até o desejo dos médicos de proteger o projeto de vida da mulher que está fazendo um aborto.

Note-se que aqui não são apenas pessoas pecadoras que são abençoadas, mas que, ao abençoar o casal, é o próprio relacionamento pecaminoso que é abençoado.

Uma quinta observação diz respeito à inconsistência interna desta inovadora “bênção pastoral”. É possível dar uma bênção não litúrgica, isto é, que não represente oficialmente o ensino de Cristo e da Igreja? A chave para responder a esta pergunta não é se os ritos são oficialmente aprovados ou improvisados espontaneamente. A questão é se aquele que dá a bênção é um padre, um representante de Cristo e da Igreja. A FS afirma que não há problema para o padre se juntar à oração daqueles que se encontram em uma situação contrária ao Evangelho (FS 30), mas nesta bênção o padre não se junta apenas à sua oração, mas invoca a descida dos dons de Deus sobre a relação em si. Na medida em que o padre age como padre, ele age em nome de Cristo e da Igreja. Agora, afirmar que se pode separar o significado desta bênção do ensino de Cristo é postular um dualismo entre o que a Igreja faz e o que a Igreja diz. Mas, como ensina o Concílio Vaticano II, a revelação nos é dada por atos e palavras, que são inseparáveis (Dei Verbum 2), e a proclamação da Igreja não pode separar atos de palavras. São precisamente as pessoas simples, a quem o documento deseja favorecer promovendo a piedade popular, que são mais suscetíveis de serem enganadas por um ato simbólico que contradiz a doutrina, pois elas compreendem intuitivamente o conteúdo doutrinário do ato.

À luz disto, um católico fiel pode aceitar o ensino de FS? Dada a unidade de atos e palavras na fé cristã, só se pode aceitar que é bom abençoar estas uniões, mesmo de forma pastoral, se se acredita que tais uniões não são objetivamente contrárias à lei de Deus. Segue-se que, enquanto o Papa Francisco continuar a afirmar que as uniões homossexuais são sempre contrárias à lei de Deus, ele está implicitamente afirmando que tais bênçãos não podem ser dadas. O ensino de FS é, portanto, autocontraditório e, portanto, requer mais esclarecimentos. A Igreja não pode celebrar uma coisa e ensinar outra porque, como escreveu São Inácio de Antioquia, Cristo foi o Mestre “que falou e fez” (Efésios 15, 1), e não se pode separar sua carne de sua palavra.

Também questionamos se um sacerdote poderia aceitar abençoar tais uniões, algumas das quais existem paralelamente a um casamento legítimo ou onde é usual a mudança de parceiros. Segundo a FS, ele poderia fazê-lo com uma bênção “pastoral” não litúrgica, não oficial. Isso significaria que o padre teria que dar essas bênçãos sem agir em nome de Cristo e da Igreja. Mas isso significaria que ele não estaria agindo como padre. De fato, ele teria que dar essas bênçãos não como um padre de Cristo, mas como alguém que rejeitou Cristo. De fato, por suas ações, o padre que abençoa essas uniões as apresenta como um caminho para o Criador. Portanto, ele comete um ato sacrílego e blasfemo contra o plano do Criador e contra a morte de Cristo por nós, que visava cumprir o plano do Criador. O bispo diocesano também está envolvido. Como pastor de sua igreja local, ele é obrigado a impedir esses atos sacrílegos, caso contrário, ele se tornaria um cúmplice deles e negaria o mandato dado a ele por Cristo para confirmar seus irmãos na fé.

Os padres devem proclamar o amor e a bondade de Deus a todas as pessoas e também ajudar os pecadores e aqueles que são fracos e têm dificuldade na conversão, com conselho e oração. Isso é muito diferente de mostrar a eles com sinais e palavras inventados, mas enganosos, que Deus não é tão exigente sobre o pecado, ocultando assim o fato de que o pecado em pensamento, palavra e ação nos afasta de Deus. Não há bênção, não apenas em público, mas também em privado, para condições de vida pecaminosas que objetivamente contradizem a santa vontade de Deus. E não é evidência de uma hermenêutica saudável que os corajosos defensores da doutrina cristã sejam rotulados como rigoristas, mais interessados no cumprimento legalista de suas normas morais do que na salvação de pessoas concretas. Pois é isso que Jesus diz às pessoas comuns: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mt 11, 28-30). E o apóstolo explica desta forma: “E seus mandamentos não são pesados, pois todo aquele que é gerado por Deus conquista o mundo. E a vitória que conquista o mundo é a nossa fé. Quem é o vencedor sobre o mundo senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1 Jo 5, 3-5). Num momento em que uma antropologia falsa está minando a instituição divina do casamento entre um homem e uma mulher, com a família e seus filhos, a Igreja deve lembrar as palavras de seu Senhor e Cabeça: “Entrem pela porta estreita; pois larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à destruição, e muitos são os que entram por ela. Quão estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida. E poucos são os que a encontram” (Mt 7, 13-14).

— Gerhard Ludwig Müller é Cardeal da Igreja Católica e prefeito-emérito da Congregação (atual Dicastério) para Doutrina da Fé.
— Artigo originalmente publicado no site The Pillar.
— Tradução de Silvio Grimaldo.

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